Leituras e outras reflexões

Robert Moses, New York City, 1959. Arnold Newman

Se pareço em silêncio estou na realidade absorvida em trabalhos e tarefas. Entre leituras, escrita, pesquisa, afazeres natalícios e outros, a vida está em andamento. Entre as diversas leituras que tenho feito, eis que me deparei recentemente com um autor que desconhecia e ao qual cheguei através de uma peça de teatro. É esta a riqueza do conhecimento em cadeia: um autor leva-nos a outro, uma peça leva-nos a um livro, uma personalidade leva-nos a um filme e por assim adiante. O meu conhecimento é organizado com uma lógica quase waburguiana (de Aby Warburg, portanto), isto é, de um modo que é muito pessoal e compatível com todos os meus interesses.

Os interesses de uma pessoa trazem valor à sua própria vida, mas cativar o outro de modo a suscitar-lhe a curiosidade, é tarefa por vezes mais árdua. Acredito porém que a paixão que alguém coloca num trabalho, contagia. Sobre isto regresso então ao autor a que acima aludi: Robert Caro. Caro é historiador e autor americano, que se vê a si mesmo como um jornalista de investigação, reconhecido pelas biografias de Robert Moses e Lyndon B. Johnson. A biografia do urbanista  Moses — que alterou a face da cidade de Nova Iorque num trabalho que exerceu durante mais de quarenta anos, numa estreita ligação de influência com o poder político, sindical, eclesiástico… — foi o primeiro livro de Caro. The Power Broker: Robert Moses and the Fall of New York é o livro ao qual espero dedicar uma parte das minhas leituras no próximo ano. Mas falarei aqui do livro e do muito interessante assunto de que trata, quando o terminar.

Ao ouvirmos Caro falar sobre o seu trabalho nas diversas entrevistas disponíveis, apercebemo-nos de um homem realmente apaixonado pela investigação, encarando-a de modo obsessivo, obstinado, criativo. Um professor universitário disse-lhe em tempos que para aquilo que ele intuía que Caro podia ser na vida, precisava de deixar de pensar com os dedos, tal era a rapidez com que ele escrevia os seus textos. Caro compreendeu que precisava de abrandar o ritmo da escrita e de aprofundar a investigação e o pensamento, e tornou-se num dos investigadores mais respeitados, responsável, praticante de uma seriedade intelectual que é admirada pelos seus pares e leitores (apesar de ambas as biografias lhe terem criado algumas hostilidades pela inovação e descobertas históricas de Caro, sobretudo com Johnson, e não pela ausência da verdade). Caro enquadra-se na categoria de génio pela capacidade de trabalho e de aprofundamento de que é capaz de explorar. O livro sobre Robert Moses demorou-lhe sete anos de investigação e a biografia política do presidente americano Johnson conta já com quatro volumes e um quinto, em preparação, há vários anos.

Numa das entrevistas Caro refere que o seu pai (sendo Caro filho de um casal judeu), um emigrante polaco que falava yiddish com os seus amigos, aprofundara a língua inglesa copiando e rescrevendo os textos que lia na imprensa americana. Este gesto de silenciosa disciplina ficou certamente de algum modo incutido na personalidade de Caro, que revelou com os anos uma idêntica resiliência voltada para esse solitário e periclitante mundo que é o da investigação.

No documentário Turn Every Page (2022) sobre a relação editorial e histórica entre Robert Caro e o editor que o publicou, Robert Gottlieb, vemos Caro na Lyndon B. Johnson Library a preparar-se para consultar caixas com manuscritos de toda a espécie, para a investigação do seu último volume sobre a presidência de Johnson, que afinal foi presidente apenas por cinco anos, lugar precedido por uma poderosa carreira política.

Talvez caiba aqui dizer que há uns anos uma investigadora portuguesa (confesso que não me lembro do seu nome nem o procurei para o efeito) dizia numa entrevista de vida, na imprensa portuguesa, que já não tinha «estatuto» para subir um escadote para retirar livros das estantes. Inferiorizou de uma assentada o trabalho daquele que investiga, muitas vezes com sacrifício pessoal e familiar (foi o caso de Caro, aliás) achando que naquele momento da sua existência profissional, deviam ser outros a investigar por ela. Não sei se isto corresponde a uma escola de investigação, a um método ou se foi uma tirada infeliz, mas difere em absoluto de Caro e de outros investigadores que pessoalmente conheço. No caso de Caro, e embora ele tenha a assistência da sua mulher no decurso das investigações, a investigação é precisamente, como já aqui referi, a grande paixão do ofício que ele pratica.
E, por sua vez, aquilo que cativa em Caro é a entrega ao trabalho, a devoção a um projecto de vida que inclui Moses e Johnson e todo o ambiente em que se moveram e as personalidades de que se rodearam. Trata-se de história, de política, de sociedade, de humanismo, de economia, enfim, de uma série de temas e assuntos relacionados que retratam um relevante pedaço da história americana.

É evidente que no cerne da investigação de Caro está o poder. E se o poder corrompe também é capaz de trazer benefícios e mudanças de grande valor para a vida das pessoas: esta é uma das conclusões de Robert Caro. Num tempo em que se discute obsessivamente a política, nacional, no caso, o que mais se discute verdadeiramente decorre de um certo vazio dos discursos de uma classe política a quem parece faltar criatividade e mundo. «Aprendem a vida nas jotas», disse Lobo Antunes em tempos. O combate político parece estar meramente em alcançar um lugar de poder, mas, e depois, o que fazer com ele? Sobre os políticos mais mediáticos, pergunto-me: Que livros lêem? Que filmes vêem? Que viagens fazem? Com o que se importam? O que pensam de coisas concretas? Em suma, por que razão nos querem governar? A forma de fazer política precisa de se reinventar para que possamos voltar a acreditar, um bocadinho que seja, mais nela. O pensamento político que se relaciona com o poder de verdadeiramente influenciar precisa de se questionar, e tudo isto é muito mais abrangente do que se possa pensar, como Caro tão laboriosamente nos tem vindo a demonstrar.

2 thoughts on “Leituras e outras reflexões

  1. Olá Lourença.
    Não lhe foi difícil despertar a curiosidade dos seus leitores. Fico a aguardar com grande expectativa o que vier a escrever sobre a biografia de Lyndon Johnson. Estou particularmente o interessado nas horas imediatamente anteriores e posteriores ao atentado contra John Kennedy. Pelas leituras muito breves que fiz, Lyndon Johnson foi protagonista de cenas dignas de Júlio César, de Shakespeare.
    Entre todas as perguntas que faz no último parágrafo, a que mais tem ocupado a minha atenção, é aquela que quer saber da razão pela qual estes senhores nos querem governar. Sendo certo que não é para nos servirem ou para servirem uma ideia elevada de povo e nação, porque será?
    O nosso PM em funções entrou em modo relax e tem-se permitido algumas inconfidências, enquanto aguarda por um cargo europeu. Quase lhe caiu a lágrima quando um jornalista lhe perguntou o que tinha a dizer sobre o apoio constante que a mulher lhe tem dado neste momento difícil.
    Mas o mais interessante e significativo para tentar perceber porquê, porque é que nos querem governar, foi o que o PM disse no discurso com que encerrou a apresentação do relatório da comissão tecnica indepente, que avaliou as propostas de localização do novo aeroporto. Explicou o PM que agora, depois do trabalho da comissão, era a vez do decisor político e que todos percebiam com certeza, a inveja que ele tinha de já não ser ele a fazer o jogo de decidir e escolher entre as recomendações da comissão ( sorrizinho amarelo).
    António Lobo Antunes sintetizou magnificamente uma parte da formação destes políticos: aprendem a vida nas Jotas. Devem aprender muito rapidamente a não entregar o coração porque na vida pública e política, os lideres não existem ou são muito transitórios, e essa deve ser uma grande desilusão. E eu acho que todas estas discretas confidências do nosso PM, agora que está a colocar-se a jeito para um cargo europeu, algumas com palavras fortes como inveja, têm este sentido, inconsciente talvez: o meu coração está novamente disponível.
    Desejo-lhe um feliz Natal.
    Até breve
    Manuel Alcântara

Deixe um comentário