Mundos e Fundos

A relação do país com os mundos e fundos europeus, por vezes, espelha a tragédia das eloquentes peças de Shakespeare. Tudo aquilo que há de mais intenso na alma humana e que não se encontra à superfície, que o brilhante dramaturgo inglês soube aprofundar e observar na sociedade que o rodeava, está presente nesta peça dos fundos: a ganância, o engano, a hipocrisia, a dissimulação, a debilidade, a mentira, o fracasso, o desamor, enfim, Shakespeare, com a sua observação sagaz, o seu perfeito discernimento, o seu talento com a linguagem e o que ela é capaz de revelar, registou o que de mais sinistro a humanidade pode conter perante uma vontade que, na realidade, é maior do que ela pode suportar. Não há finais felizes em Shakespeare, há o curso dos acontecimentos por caminhos conturbados.

Fala-se muito dos milhões de euros que existem para gastar ou que já foram gastos, mas o tão desejado progresso da coisa pública parece estar sempre a pairar em águas movediças. Neste contexto seria bom começarmos a conhecer projectos de utilidade pública que tenham sido realmente benéficos para a comunidade, o conhecimento, a cultura para que a nossa confiança não desabe por completo. O dinheiro que vem da Europa tornou-se numa espécie de modus vivendi e depois a ver quem consegue deitar-lhe a mão. Os fundos do PRR foram a ferradura virada para baixo do governo anterior e será do governo porvir já pressionado a gastar, gastar, gastar. Gasta-se porque gastar é mostrar serviço à Europa e porque há dinheiro, não exactamente porque haja um pensamento sério e estruturado para o desenvolvimento do país. 

Confia-se. Acho bem que confiemos uns nos outros mas o certo é que está enraizado na nossa sociedade esta cultura do destempero económico, da relação abusiva em que um sofre e o outro é a vítima. Se o «mal do século» da geração romântica estava radicado no «pessimismo extremo», o mal deste século que ainda agora começou é o da corrupção. Se alguém se deixasse corromper por um bilhete de ópera no La Scala de Milão, isso já quereria dizer alguma coisa mais sobre as aspirações culturais da sociedade em que vivemos. «Infirm of purpose», diz Lady Macbeth, o que coloca na sombra a beleza do lugar que o país ainda ocupa nos manuais da história. Confesso que me faz impressão esta pressão e imposição que vem não sabemos exactamente de onde, de que é preciso aplicar os fundos, assim, quase sem mais. Seria proveitoso ser questionada a integridade dos propósitos que os guiam, pois é na reflexão que nos encontraremos enquanto povo da democracia.

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