Maigret, o filme

Georges Simenon (Photo Paris Match).
Maigret et la Jeune Morte foi publicado em 1952.

Vi, há um par de dias, o filme Maigret de Patrice Leconte, protagonizado por Gérard Depardieu e baseado no livro do prolífico autor belga Georges Simenon — Maigret et la Jeune Morte. Ingredientes — como se diz na crítica — que vão ao encontro da minha atracção por um desafiante mistério a ser revelado. Aqueles familiarizados com esta linguagem, sabem que um mistério digno desse nome não se encontra facilmente. Somos espectadores exigentes; queremos souplesse, ou seja, uma astúcia que nos intrigue e confunda, e nos conduza até ao desvendar da trama — no caso, quem era esta jovem rapariga assassinada?

Embora se tenha tornado relativamente impopular discutir o trabalho de Depardieu, devido às suspeitas que pairam em torno do seu inadequado comportamento em relação a uma série de mulheres que o acusam, não podemos deixar de reconhecer que é um actor com momentos de genialidade em cena. Camille Claudel, Cyrano de Bergerac, O último metro, Astérix entre outros são alguns dos filmes em que Depardieu esteve inteiro sem se mostrar distante da personagem; é um bem falante da língua francesa, com um perfeito entendimento da cultura literária do país que o viu nascer.

Ao representar o comissário Maigret, a popular figura de ficção criada por Simenon, Depardieu  apresenta-se soturno. A fotografia, aliás belíssima, sendo a cores, dá a impressão de não ter mais do que três ou quatro tons. Acompanha o espírito da personagem, a sua vida interior, o mundo que conhece e ao qual esteve ligado por força da sua profissão. Mas por vezes Depardieu parece denunciar uma vontade de fazer explodir o guião, e aquela serenidade de Maigret parece, como tal, ser o resultado de uma tensão latente e algo reprimida. 

Maigret, na interpretação de Depardieu, é, por vezes, mais uma reflexão do próprio actor do que da personagem que interpreta. Há, aliás, um momento tocante no filme, em que um idoso judeu faz referência à perda de um filho, e de como mais nada lhe resta para além das noites, a que Depardieu responde «eu sei». Mesmo que Depardieu não tenha querido misturar a vida com a arte, ali eu julgava agora inevitável estar a ver o homem desde o início do filme e não a personagem. De qualquer modo, é coerente com o método do comissário Maigret, que penetrava na vida de todos aqueles que estavam próximos do mistério a ser desvendado.

Maigret é, neste filme, e no momento da existência que atravessa, uma personagem que se debate com uma culpa e um dilema, e que guarda os segredos das coisas que testemunhou, das quais a sua vida e profissão o obrigaram a tomar conhecimento. Em suma, ele carrega a escuridão da alma humana.

Leconte, por sua vez, procura ser meticuloso em tudo: nas descrições, nos gestos, nos hábitos, nos tiques, nas perversões duns e doutros, sem contudo as explicitar, deixando sobre elas uma sugestão. Quando pensamos que ele vai perscrutar a perturbada mente das personagens, em diálogos ou monólogos, ele pára, e não alcançamos esse outro lugar que faria de Maigret verdadeiramente um filme sobre caprichos. A não ser que Leconte se tenha apercebido de que há caminhos por onde não podemos avançar porque o espectador não está preparado para se reconhecer neles. Assim, ele opta por deixar em suspenso o discurso e criar uma aura de inacabado. Talvez seja este o ponto em Maigret: a realidade que jaz sob o corpo e toca os nervos sensoriais, é um caminho sinuoso e perigoso de ser penetrado. 

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